terça-feira, 14 de julho de 2009

Onde estamos ???!!!!

Onde está o missionário ideal?

Bráulia Ribeiro

O telefonema veio de um lugar remoto, na fronteira do Acre com o Peru. A voz da mulher tinha um tom resoluto. Ela sabia o que queria fazer e não parecia amedrontada. Ao mesmo tempo em que falava, se supria de uma consciência mais intensa de que não podia deixar as coisas como estavam.

“Ah, Bráulia, ore por nós; presenciamos muito sofrimento. Os políticos da região, para se eleger, levaram caixas de cachaça e até álcool puro para as aldeias, embebedando os índios, brigando, espancando homens e mulheres. Um deles se amasiou com duas irmãs e engravidou as duas. Bate constantemente nelas, e ontem derrubou uma das grávidas de um barranco cinco vezes. Ela se levantava e subia, e ele a derrubava novamente lá embaixo. Ele é grosseiro e domina o pai das moças com álcool e os irmãos com violência. Temos que denunciá-lo, mas ele está nos ameaçando. Já falou para a vila inteira que vai nos matar. Nos seguiu quando viemos até a vila, mas mesmo assim conseguimos marcar um encontro hoje à noite com a Polícia Federal para falar sobre o que essa corja política local faz na aldeia.”

Uma denúncia como esta, num mundo onde dominam as armas e a falta de lei, é como “água fria para o sedento”. O reino de Deus que aquela família leva para aquele lugar significa justiça, respeito e dignidade para os indígenas e para as vilas ao redor.

O jovem casal tem menos de 30 anos e está conosco há uns cinco. Com dois filhos pequenos, enfrentam, além de tudo, dificuldade financeira. Ainda que a Jocum tivesse condição de pagar altos salários, nada compensaria a insegurança e o medo que eles estavam enfrentando agora e com os quais teriam de conviver depois da denúncia.

Lembrei-me de como esta moça chegou à Jocum. Ainda “não era crente direito”. Nunca tinha vivido uma vida limpa, nem mesmo na infância. Vestia-se no dia-a-dia como quem sai para fazer um programa na noite. Movia-se com um gingado de dançarina de cabaré. Várias vezes ouvi os líderes do curso de discipulado confabularem sobre ela, desesperados, pensando se haveria jeito para alguém assim.

Hoje, ela e o marido são missionários que qualquer missão gostaria de ter reforçando suas trincheiras. Abnegados, dedicados, amorosos, íntegros e, mais do que isto, a mulher tem garra de guerrilheira.

Infelizmente, houve uma época em nossa comunidade missionária que nos cansamos de jovens e dos “problemas” que chegavam a cada nova leva de alunos. Começamos a pensar em fazer um escrutínio apurado de todos os formulários, na tentativa de evitar que recebêssemos jovens “problemáticos”, que têm o potencial de consumir toda a nossa energia e produzir muito pouco ou quase nada para missões. Queríamos maturidade, e não juventude. Pela misericórdia de Deus, o plano não deu certo, e já nos curamos deste pensamento doente. Redescobrimos nosso DNA, e ele está diretamente ligado à responsabilidade de transferir destino àquele que não o tem. Significa mobilizar os que “não são”, os loucos, garimpar tesouros na lama.

Apaixonei-me novamente pelos jovens. O Reinaldo, meu marido, começou o primeiro curso desta nossa nova fase com uma palavra que ele acredita ter ouvido de Deus: “Aquele que vem a mim, não o lançarei fora”. Recebemos de uma só vez quase trinta malucos, góticos, satanistas, neo-hippies, patrícias e maurícios, alguns sexualmente definidos de maneira errada e outros indefinidos propositalmente, jovens de classe média ou quase favelados. Nunca aprendi tanto em minha vida.

Nenhum destes novos candidatos a missões seria considerado apto por nossos padrões religiosos. Em missões temos de ter a nata espiritual de nossas igrejas.

Entendi, naquele tempo, que para Deus todos são “nata”, como a mulher que me ligou, ontem perdida, hoje representando justiça e dignidade. Todos gente comum, gente especial sem o ser, trazidos pelo Senhor, seja de um garimpo distante, da seita do chá ou da Assembléia de Deus, para passar pela máquina de redimir destinos chamada reino de Deus.

• Bráulia Ribeiro, missionária em Porto Velho, RO, é autora de Chamado Radical. braulia_ribeiro@yahoo.com

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